Empoderamento Feminino Parte II - O Valor de Uma Vida É Mensurável?
- LRVStudios
- 8 de mar. de 2021
- 16 min de leitura
"sempre temos que recriar uma linguagem que mostre respeito pelas mulheres. Se andássemos por um momento com seus sapatos nos sentiríamos indignados" - foto de robin javier
Olá pessoal, tudo bem? Antes de mais nada, deixo aqui minha homenagem à vocês, mulheres - não apenas por hoje ser o "dia internacional das mulheres"; mas por toda a luta e conquistas de todas durante todos esses anos.
No post anterior, falamos sobre a origem da violência de gênero, afirmada pelo patriarcalismo e perpetuada pela religião e, posteriormente, pela ciência. Achei importante trazer esses conceitos gerais para que possamos entender não somente como nossa sociedade - ainda - é machista; mas também conseguirmos perceber que a indústria dos jogos não é a única que se comporta de maneira diretamente proporcional à cultura, política e à própria história da humanidade.
Sei que para muitos é contra intuitivo falar de temas assim e relacioná-los aos jogos digitais; mas acredito ser fundamental compreendermos que todas as mídias digitais - filmes, séries, programas de televisão, facebook, etc...e, inclusive, os jogos - tem o poder de influenciar direta e/ou indiretamente a cultura de nossa sociedade.
Sendo assim, recomendo a leitura da postagem anterior (ver aqui) para continuar a leitura deste texto. Pretendo trazer aqui uma continuação, de forma que possamos entender que os pilares erguidos pelo movimento feminista foram essenciais para a construção da sociedade que vivemos hoje; contudo, para termos uma sociedade mais inclusiva, é dever de todos pensarmos sobre esses assuntos e, o mais importante: "O que podemos fazer para ajudar?".
Portanto, mesmo que ainda falte muito para que possamos ter um mundo mais igualitário, temos vários indícios que o pensamento geral da sociedade vem mudando - para melhor; mesmo que, ainda assim, a taxa de feminicídio continue aumentando, a violência de gênero continue existindo e, infelizmente, vocês mulheres ainda sejam vistas como uma "ameaça" ao patriarcado.
Dito isso "tudo", vamos então a mais um texto. Sejam muito bem vindos(as), espero que gostem e não esqueçam de compartilhar para que mais pessoas tenham acesso ao conteúdo. Lembrando que qualquer apoio que possam dar aqui no blog, ou nos outros canais da LRVStudios, também é muito bem vindo. Gratidão à todos(as) vocês que acompanham meu trabalho. - deixo as referências e links ao final do texto.
O movimento feminista
A história do “empoderamento” feminino não é tão antiga como deveria ser. Em geral, até o século XIX, a mulher era vista como um ser inferior aos homens, as quais não possuíam os mesmos privilégios que eles, por exemplo, ler, escrever, estudar, guerrear, enfim, escolher.
O conceito sobre "Feminismo" começa a ser abordado em meados do sécudlo XIX, embora aqui no Brasil o movimento começa a ganhar força só na década de 70, com o caso "Doca Street", que assassinou sua companheira "Ângela Diniz" alegando "Legítima defesa da honra" e que, em um primeiro momento, fora absolvido.
Entenda, era comum alegar "legítima defesa da honra" e, até os dias de hoje, essa atribuição ainda é usada por alguns advogados com base no "sentimento/amor". A "irresponsabilidade criminal" abria portas para a possibilidade de isentar a culpa daqueles que "se acharem em estado de completa perturbação dos sentidos e de inteligência na hora de cometer o crime".
"(...) Embora esse artigo objetivasse proteger especialmente “alienados mentais”, ele passou a ser utilizado por advogados de defesa dos assassinos que argumentavam ser a paixão “uma espécie de loucura momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que estavam por ela possuídos” (CORRÊA, 1981, p. 21-22). Dessa forma, embora não explicito no código, a “legítima defesa da honra” emergia autenticada pela sociedade e, de certa forma, justificava a soberania do marido sobre a vida de sua esposa.
Devemos entender que a violência como se compreende hoje é um resultado histórico de lutas constantes dos movimentos feministas, que não aceitavam mais a justificativa de "defesa da honra" - ou qualquer outra que fosse usada a favor dos homens, com o intuito de cometer atos violentos para com as mulheres, muito menos matá-las.
Uma das primeiras manifestações do movimento feminista contra a violência veio com o slogan “Quem ama não mata”, em 1979. Na ocasião, o Brasil estava estarrecido com o julgamento de Doca Street, que matou sua companheira Ângela Diniz. Ângela Diniz foi uma socialite brasileira morta a tiros em Búzios em 1976, pelo marido Doca Street que alegou “legítima defesa da honra”, e que, em um primeiro momento, o júri o absolveu.
Após pressão da opinião pública e dos movimentos sociais feministas, um novo julgamento o condenou a 15 anos de prisão. Percebe-se, nesse caso, como a violência contra as mulheres estava naturalizada e legalizada. A sexualidade da mulher sempre foi vigiada e reprimida, não só pela família, mas também a igreja foi uma forte influência nos padrões de comportamento das mulheres (DEL PRIORE, 2013, p. 37). Cabia às mulheres brancas serem trancadas em casa, já as negras “serviam para a fornicação”. (DEL PRIORE, 2013, p. 37).
Com o avanço da tecnologia e da informação, mediante às taxas de violência altas e, ainda, somando aos movimentos sociais feministas, o Estado começa a ser pressionado à pensar em políticas públicas de atendimento e acolhimento das mulheres.
Para que funcione, são necessárias as medidas públicas que resultem em ações afirmativas em diversos espaços sociais - como menciono nesse texto, devido à construção histórica e já inerente à nossa sociedade, para que haja uma desconstrução, é preciso aliar políticas públicas em diversos espaços sociais - escolas, universidades, empresas, moradias e bens culturais.
Além disso, o papel nessa desconstrução não é puramente e unicamente do Estado, mas sim de todos nós. Apesar de todas as justificativas para um tratamento desigual e do uso de violência contra as mulheres estar em constante desconstrução, ainda falta muito para alcançarmos uma sociedade mais igualitária.
Feminicídio
Apesar de ser algo que acontece faz muito tempo, é recente o reconhecimento do feminicídio como "crime" - e como palavra aparentemente, sendo grifada em vermelho pela maioria dos corretores ortográficos. As razões para que a violência - resultando em morte - contra as mulheres continue sendo praticada até os dias de hoje estão arraigadas historicamente (ver aqui) e eram legitimadas pelo "Código Filipino (1603)", sendo notável a intenção do patriarcado em promover a soberania masculina.
A tipificação do feminicídio no Brasil é recente; somente em 2015, foi sancionada pela presidenta Dilma a lei 13.104, que reconhece esse tipo de crime – ou seja, que mulheres morrem pelo fato de serem mulheres – e o coloca no rol de crimes hediondos. Entretanto, em termos históricos, as razões do feminicídio já estavam arraigas na cultura e legitimadas no passado por outro ordenamento jurídico, o Código Filipino (1603), que assegurava o poder soberano do marido sobre a vida de sua esposa.
Conforme o artigo 25: [...] toda mulher que fizer adultério a seu marido, morra por isso. E se ela para fazer adultério por sua vontade se for com alguém de casa de seu marido ou doente a seu marido tiver, se o marido dela querelar ou a acusar, morra morte natural (LARA, 1999, p. 117).
Embora superado por mais de dois séculos, o argumento de matar em “legítima defesa da honra” ou por “violenta emoção” continuou por muito tempo sendo usado nos tribunais brasileiros e, em muitos casos, sendo aceito para justificar a impunidade.
Apesar de serem inaceitáveis as justificativas para tais crimes, elas eram comuns e aceitas - até hoje, infelizmente, algumas pessoas ainda pensam dessa forma. Foi em meados da década de 50 que começaram a surgir questionamentos, posições de enfrentamento e luta - muita luta mesmo - para que chegássemos à nossa sociedade atual.
Aqui no Brasil, esses questionamentos começam a ser formulados por volta da década de 70, trazendo o feminicídio como referência ao: “(...)conjunto de violências dirigidas especificamente à eliminação das mulheres por sua condição de mulher”; vale ressaltar aqui que, essa "eliminação" não se dá apenas pela extração da vida de um corpo, mas por todo o significado que o "feminino" traz, fazendo com que seja comum o requinte de crueldade atrelado à esses crimes.
Segundo Mariza Corrêa, o primeiro Código Penal republicano (1890), ao apresentar como inovação a “irresponsabilidade criminal”, abriu a possibilidade "de isentar de culpa os que se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime".
Embora esse artigo objetivasse proteger especialmente “alienados mentais”, ele passou a ser utilizado por advogados de defesa dos assassinos que argumentavam ser a paixão “uma espécie de loucura momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que estavam por ela possuídos” (CORRÊA, 1981, p. 21-22). Dessa forma, embora não explicito no código, a “legítima defesa da honra” emergia autenticada pela sociedade e, de certa forma, justificava a soberania do marido sobre a vida de sua esposa.
É nesse período também (Movimento Feminista - 1970) que o conceito de feminicídio começou a ser formulado pelas feministas. Ele tem sido usado para se referir ao assassinato de mulheres motivado por questões de gênero, ou seja, o termo designa o “conjunto de violências dirigidas especificamente à eliminação das mulheres por sua condição de mulher” (SEGATO, 2016, p. 141).
Como se já não fosse suficiente, o quadro piora. Acontece que além da taxa de feminicídio ter aumentado (2% em relação à 2019), muitos desses crimes vem sendo cometidos por desconhecidos - caindo por terra o argumento de "crime passional", por exemplo. Devemos sempre lembrar, portanto, que existe uma "estrutura de gênero" e "um mandato de dominação". Ou seja, quando abordamos esse tema, não estamos trazendo um indivíduo específico - mas analisando o que está por trás da mão que puxa o gatilho, que desfere as facadas, que acerta a pedra.
(...) O feminicídio ocorre também em contextos marcados pela impessoalidade. Rita Laura Segato, uma das principais intelectuais feministas que contribuiu para a formulação do conceito, a partir, sobretudo, dos emblemáticos crimes de Ciudad Juarez no México, tem chamado atenção para o caráter cada vez mais frequente e sistemático de assassinatos de mulheres por desconhecidos ou fora de relações pessoais, como resultado das novas formas de guerra que caracterizam os cenários bélicos no mundo atual.
Conforme essa autora, a violência de gênero de maneira geral é expressiva e diz respeito às disputas pelo poder e pela soberania. Nessa nova forma de guerra que “assume roupagens desconhecidas”, o principal cenário é o corpo feminino, que se torna “texto e território de uma violência que se escreve privilegiadamente aí” (SEGATO, 2015, p.2). É assim que cada feminicídio expressa uma mensagem de terror e de poder.
É aterrorizante ver como Sagato aborda a violência contra a mulher como uma pauta de guerra, vista em cenários bélicos e, mesmo assim, ver que se é falado pouquíssimo sobre o assunto. Penso que, para que consigamos trazer ações afirmativas e pertinentes tema, precisamos antes de mais nada, entender.
Existe uma série de fatores que colaboram para que ainda ocorra a perpetuação do feminicídio. Contudo, assim como Sagato traz o cenário bélico como referência para exemplificar o crime, podemos entender que o mesmo deve ser tratado como um crime de Estado, já que quando este não dá garantias nem cria condições de segurança para as vidas das mulheres na comunidade, acaba por incentivar indiretamente tais crimes.
Para que se dê o feminicídio, concorrem de maneira criminal o silêncio, a omissão, a negligência e a conveniência de autoridades encarregadas de prevenir e erradicar esses crimes. Há feminicídio quando o Estado não dá garantias para as mulheres e não cria condições de segurança para suas vidas na comunidade, em suas casas, nos espaços de trabalho e de lazer. Mais ainda quando as autoridades não realizam com eficiência suas funções. Por isso o feminicídio é um crime de Estado (Lagarde, 2004, p. 5 apud PASINATO, 2011, p. 232).
Com isso, podemos entender que o movimento feminista surge como uma afronta à todos esses conceitos machistas e patriarcais enraizados em nossa sociedade. Depois de tanta violência, era preciso dar um basta! Assim como o caso "Doca Street" aqui no Brasil, muitos outros começaram a ser questionados, debatidos e enfrentados por vocês, mulheres.
Agora, penso que com tudo o que falamos até então, fica mais claro entender de onde vem tanta revolta; assim como podemos entender que, por mais que esses movimentos contrários ao patriarcalismo sejam abordados de forma mais natural nos dias de hoje, ainda vemos um aumento da taxa de feminicídio. Daí, podemos nos perguntar "Qual o valor de uma vida?", seja ela qual for.
O valor de uma vida é mensurável?
A resposta para essa pergunta deveria ser clara e objetiva: Não! Contudo, trago aqui alguns trechos extraídos do artigo escrito por Cláudia Maia: "Sobre o (des)valor da vida", onde ela explica de maneira clara os aspectos envoltos à mensuração de uma vida - se é que isso é possível - e a contextualização da mulher e, especificamente, da valorização de suas vidas em nossa sociedade.
Partindo da perspectiva de Foucault, Giorgio Agamben propõe o conceito de vida nua para problematizar a vida nos quadros da biopolítica moderna. Ele formula esse conceito levando em conta a figura emblemática e ambivalente do homo sacer, presente no direito romano arcaico, que consiste num indivíduo que, ao mesmo tempo que não pode ser sacrificado, pode ser morto por qualquer um, impunemente, sem que se cometa um crime. A vida nua seria, nessa perspectiva, essa vida 'matável' do homo sacer (AGAMBEN, 2007, p. 90).
O conceito de "homo sacer" no pensamento descrito através de Agamben mostra como a mulher se enquadra perfeitamente ao conceito, sendo que não pode ser "sacrificada"; contudo, pode ser morta por qualquer um, sem que se cometa um crime. Esse conceito é expressado através do "valor" que se dá à vida humana.
Um dos grandes problemas de nossa sociedade atual - que também fora construído através de processos históricos e culturais - é o de que nem todas as vidas tem valor. Não basta desejar viver (pensamento individual), é preciso que toda a sociedade reconheça o valor daquela vida, para que possamos preservá-la. A partir do momento no qual uma vida apresente certo (des)valor na sociedade, seja por "n" motivos, ela pode ser extinta de forma impune.
Outro conceito que orienta sua análise é o de vida sem valor, ou indigna de ser vivida, formulado pelo especialista em direito penal Karl Binding em 1920, ao propor uma solução jurídica para a impunidade do aniquilamento de terceiros, para além do suicídio. Para o especialista, essa solução dependeria “da resposta que se dá à pergunta: ‘existem vidas humanas que perderam a tal ponto a qualidade de bem jurídico, que a sua continuidade, tanto para o portador da vida como para a sociedade.
Para Agamben, “é como se toda valorização e toda ‘politização’ da vida [...] implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser politicamente relevante”, tornando-se uma vida nua, uma vida indigna de ser vivida, e, por isso, lugar de uma decisão soberana. Toda sociedade fixa continuamente esses limites, que, no horizonte biopolítico contemporâneo, alargaram-se, passando a habitar o “corpo biológico de cada ser vivente” (AGAMBEN, 2007, p. 146).
Faz-se extremamente necessária então a posição não apenas do indivíduo - no caso, a mulher - mas também do Estado e da sociedade como um todo. O movimento feminista, por exemplo, visa transmitir esse recado: "Nós, mulheres, temos valor! Nossa vida é importante, assim como a de todos". Contudo, não é suficiente para que tenhamos uma sociedade mais igualitária, visto que esse é um dever não apenas de um indivíduo ou de um grupo - mas de todos nós.
Podemos vislumbrar alguns desses limites sendo traçados cotidianamente para justificar a violência contra as mulheres. Na historiografia brasileira, trabalhos (...) demonstraram a prática comum nos tribunais de colocar em “julgamento” certas formas de conduta da vítima, quando mulheres, consideradas socialmente inadequadas aos comportamentos femininos ou que diferem de um padrão que se espera das mulheres, como estratégia da defesa para minimizar, desqualificar ou justificar o crime cometido contra elas.
Para ser vivível, ressalta Butler, a vida exige apoio e condições possibilitadoras para que possa ser mantida como vida, isto é, depende, fundamentalmente, de “condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver” (Butler, 2016, p. 40).
Por isso, a condição precária designa uma condição politicamente induzida; trata-se de uma condição generalizada de todos que vivem em sociedade. Entretanto, essa condição se diferencia à medida que cada sociedade constitui historicamente um conjunto de ações, práticas, leis, organizações sociais e políticas com objetivo de “maximizar a precariedade para alguns e minimizar a precariedade para outros” (Butler, 2016, p. 41), o que equivale a decidir quais vidas são politicamente relevantes e que devem ser preservadas assim como quais não são consideradas “potencialmente lamentáveis”, logo, valiosas e, por isso, obrigadas “a suportar a carga da fome, do subemprego, da privação de direitos legais e da exposição diferenciada à violência e à morte” (Butler, 2016, p. 45-46).
Ao mesmo tempo que vemos uma atenção maior da sociedade moderna quando o assunto é a violência de gênero - a tipificação do termo "feminicídio", a fixação de penas mais elevadas aos feminicidas, entre outros aspectos que visam equilibrar essas relações assimétricas de poder que fundamentam os crimes baseados em gênero - podemos ver também uma lentidão e, em alguns casos, até retrocessos relacionados aos estudos e discussões em torno desses crimes.
(...) O Brasil foi um dos últimos países na América Latina a criar uma lei específica sobre o feminicídio e também o que determinou as penas mais brandas
Nele, o termo “gênero” foi substituído pelo termo “sexo feminino”, retirando significados e conotações culturais e históricas. A lei do feminicídio foi uma resposta do Estado às pressões feministas e uma tentativa de proteger as mulheres, em um momento de ampliação e de reconhecimento de seus direitos no Brasil. Ela tem sido fundamental para nomear, reconhecer e dar visibilidade à violência de gênero, por séculos naturalizada e silenciada. Entretanto o poder de disciplina, de coerção e de punição não é suficiente para mudar comportamentos e valores.
Precisamos romper essa estrutura de gênero e seu mandato de dominação, antes de procurar resultados mais significativos. Isso pelo motivo que a discussão sobre violência de gênero vai além do "corrigir" e "punir" - é preciso uma análise dessa construção ideológica fictícia, que coloca o feminino como inferior, posse utilitária, submisso e, por fim, vidas que valem menos.
A desconstrução de tais ideologias podem levar tempo. Mas quanto tempo mais, ou melhor, quantas vidas a mais precisarão ser tiradas para que isso aconteça? A análise de tudo aquilo que serve de fundamento para nossa sociedade é essencial e deve ocorrer o tempo todo, com debates que visem ações afirmativas, seja pelo Estado ou pelo indivíduo, a fim de que obtenha-se um mundo mais inclusivo.
Para além de “corrigir” e de “punir”, é necessário mudar toda uma cultura, subverter representações de gênero que colocam o feminino como inferior, como posse, como utilitário, como submisso, como vidas que valem menos; é preciso romper com a estrutura de gênero e seu mandato de dominação, alterar profundamente relações de poder que, como procurei elucidar, (...), fundamentam grande parte dos assassinatos de mulheres.
Uma Breve Introdução À Sociedade Moderna
Vimos até aqui como se deu o processo de fomentação cultural, social e político, com base em ideologias patriarcais, usadas até os dias de hoje como justificativa para impunidade. Achei pertinente falar sobre esse processo histórico antes de entendermos nossa sociedade moderna, para que possamos perceber resquícios de uma época nem tão antiga assim.
Destacamos também que, atualmente, a violência de gênero é reconhecida como um problema não somente individual - psicologicamente falando, levando em conta tantos anos de abuso - mas também e principalmente como uma questão de saúde pública, devendo o Estado fornecer garantias e condições de segurança para a vida das mulheres na sociedade.
A violência contra a mulher é reconhecida como um problema de saúde pública pela magnitude de consequências que provoca na vida e na saúde das mulheres. Entretanto, a atenção dada ao problema no setor é ineficaz em decorrência da invisibilidade da violência nos serviços de saúde. É preciso desvelar o problema nos serviços e capacitar os profissionais por meio de novas técnicas e novos saberes.
Infelizmente, algo que deveria ser incontestável, ainda nos dias de hoje podemos considerar que existe um "debate" - mesmo que mais "sério" - à respeito da violência de gênero. Para vocês terem uma ideia, vou deixar aqui o link de uma matéria publicada hoje mesmo pela RBA, cujo título é: "Legítima Defesa Da Honra é 'Inconstitucional e Inadmissível'".
O ponto positivo disso tudo é que, se formos analisar o processo histórico da violência de gênero, os movimentos iniciados em meados da déc. de 50, e a lacuna de tempo entre eles e a nossa posição atual perante esse assunto...podemos ver certo progresso. Contudo, será que é um assunto que ainda precisa de algum "debate"?
Entendendo os aspectos sociais, culturais, políticos e históricos que construíram nossa sociedade moderna, podemos começar a pensar em respostas mais eficientes à pergunta que fiz no começo dessa postagem: "O que podemos fazer para ajudar?". Provavelmente você deve ter pensado em algumas respostas, e isso é ótimo! Mas a chance de serem ações restritas ao núcleo interpessoal do qual convive, são altíssimas. Como podemos então acelerar essa (des)construção da ideologia patriarcal, e ainda atingir um maior número de pessoas?
Devemos levar em consideração a intervenção das mídias digitais na construção cultural, política e social de nossa sociedade. Com o aumento da tecnologia e, atualmente, com a pandemia, temos um número gigantesco de pessoas acessando a internet, vendo filmes, séries e, obviamente, jogando jogos digitais.
Com base nisso, venho trazer uma breve introdução do que falaremos no próximo post aqui do blog, de forma a mostrar alguma - ou algumas - ideias que podemos utilizar para acelerar essa evolução - sim, os jogos digitais podem ser ótimas ferramentas para tal.
(...) Há sinais de mudança, que se notam por vezes na própria televisão (Press, 2009), embora não tanto na informação na Internet (Cullity & Younger, 2009) ou em mobile location-based services (Hjorth, 2013). Na área dos videojogos têm surgido mais iniciativas, há mais profissionais a falarem sobre a hostilidade e a discriminação nas comunidades de jogos e a aplicarem medidas, que embora ainda embrionárias, são um primeiro passo para tornar melhores as experiências online para todos os participantes. Se os videojogos vivem tempos de crescimento até agora nunca vistos, as suas políticas de gestão de comunidades e de auto-regulação, ou de introdução de códigos específicos que melhorem a classificação de conteúdos (para além de códigos do tipo PEGI - Pan European Game Information, de controlo parental, com classificação por idades e descritores de conteúdos), estão a dar passos significativos, mas necessitam de se tornar mais visíveis e eficientes.
Contudo, como esse texto já está bem grande, pretendo aprofundar mais no assunto e dar mais exemplos na próxima postagem; mas deixo aqui alguns trechos de um artigo escrito por: Luana Rodrigues de Almeida; Ana Tereza Medeiros Cavalcanti da Silva; Liliane dos Santos Machado, cujo título é: "Jogos para capacitação de profissionais de saúde na atenção à violência de gênero":
(...) Este estudo destaca o uso dos Serious Games (SG) para contribuir com a qualificação das práticas profissionais. Esses jogos são aplicações digitais amplamente utilizadas em diferentes áreas (saúde, militar, educação) e que apresentam conteúdos pedagógicos de forma lúdica e interativa. Um SG pode contribuir com a educação permanente de profissionais de saúde quanto à atenção à violência de gênero com base na abordagem de conceitos teóricos associados ao problema e sistematizados em um mapa conceitual. Observou-se que ações de capacitação quanto à violência de gênero, além de aspectos cognitivos da aprendizagem, abrangem aspectos afetivos, uma vez que envolvem mudança de concepções e práticas.
Outra categoria de SG em processo de crescimento na última década é a de jogos para a mudança social, com o intuito de provocar nos jogadores o interesse por assuntos humanitários. Os desenvolvedores desses jogos têm o apoio de organizações, governamentais ou não, na criação de games que exploram diferentes assuntos, entre eles preservação ambiental, violência urbana, fome e conflitos civis em determinadas regiões do mundo.
Nessa categoria podemos destacar três exemplos de SG que abordam a violência de gênero: Finding Zoe25, What it is26e Breakaway27. Os dois primeiros foram produzidos por uma organização canadense, o Comitê de Ação Metropolitana sobre Violência contra Mulheres e Crianças (Metrac), que trabalha na prevenção e combate à violência contra as mulheres.
O terceiro foi produzido por alunos do Centro de Mídia Emergente em Champlain College, com o apoio das Nações Unidas, em sua campanha "Unidos pelo Fim da Violência contra a Mulher", e da Federação Internacional de Futebol (Fifa). Os três aplicativos são voltados a um público na faixa de 8 a 25 anos.
Considerações Finais
Chegamos ao fim de mais um textão e, com isso, eu só tenho a agradecer vocês. Fica aqui, mais uma vez, minha homenagem à vocês, mulheres. Sei que é pouco ainda, mas realmente espero que esse texto ajude a iluminar o pensamento de todos que vierem a ler, com o intuito de construirmos uma sociedade mais inclusiva e acelerarmos a desconstrução do patriarcalismo já enraizado em nossa cultura.
Precisei abordar aspectos sociais, culturais e históricos para conseguir explicar de maneira mais clara qual seria o papel dos jogos digitais nisso tudo - aprofundarei mais nesse tema no próximo texto. Por enquanto, falamos sobre violência de gênero, feminicídio e sobre o movimento feminista; tudo isso para chegarmos no assunto "jogos digitais" e como o universo feminino se encaixa nisso tudo.
O mais importante é sabermos que não importa a área de atuação do profissional - no meu caso, desenvolvedores de jogos digitais - podemos ajudar nessa (des)construção, de várias formas possíveis. No próximo post, trarei mais exemplos de como nós, desenvolvedores independentes, podemos trazer esses conceitos e incorporarmos durante o desenvolvimento de nossos jogos, com o intuito principal de construirmos uma sociedade mais justa.
Mais uma vez, agradeço a todos(as) que vem acompanhando meu trabalho. Caso tenha gostado do conteúdo, não esqueça de compartilhar para que mais pessoas tenham acesso. Lembrando que deixarei também as referências e artigos usados na construção desse texto, assim como o link para os outros canais da LRVStudios. Gratidão e até o próximo post. 😊
Referências e Links
post anterior - role até o final do texto para ver os artigos relacionados.
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